segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A árvore de Joshua



Joshua Wong Chi Fong (黃之鋒), é um jovem activista de Hong Kong, e qual é a novidade? A novidade é que Joshua dá um novo sentido à expressão "de pequenino se torce o pepino", pois iniciou-se no activismo político aos dez anos, aos quinze já era uma das celebridades do campo pró-democrata da RAEHK, e agora aos 17 é uma certeza desse desporto radical que é o activismo na margem leste do Rio das Pérolas. há quem lhe chame "o pequeno long-hair", o infame Leung Kwok Hung, actualmente a cumprir uma curta pena de prisão por vandalismo. Está bem que o rapaz tem cara de tontinho, mas também não é preciso ofendê-lo a este ponto com a comparação.


Joshua pode não ter ainda sido preso, ou chegado a um nível de maturidade "democrática" que o leve a atirar bananas aos altos dirigentes honconguenses e outras palhaçadas sem conteúdo ou efeito políticos, mas apesar da sua curta existência, já tem "ficha" na polícia, e durante os protestos de 2012 contra a imposição da disciplina da Educação Patriótica nos currículos escolares alegou que "tinha o telemóvel sob escuta". Este fim-de-semana esteve em Macau a apresentar um documentário de que é autor, "Lições de dissidência". É obra, para quem precisou de um papel assinado pelos pais para apanhar o "jetfoil" para esta margem. Imagino o que seria um diálogo entre Joshua e os pais: quando a mãe lhe perguntava onde é que ele ia com aquele ar de quem vai mudar o mundo, e ele dizia "vou combater o sistema", ela retorquia "nesse caso vai de calções e sapatilhas que eu não quero as calças boas manchadas", e o pai acrescentava "não voltes tarde, e quando saires leva o lixo".


Nascido a 13 de Outubro de 1996 (atinge a maioridade em dois meses, portanto) no seio de uma família cristã da classe média, o pequeno Joshua sofria de sinais precoces de dislexia, que compensou com um feitio de refilão. Aos 10 anos começou a participar em fórums sociais, primeiro como observador, e pouco depois como participante, enquanto voluntário em actividades de recolhas de fundos e outras caridades organizadas pela sua escola, o United Christian College, em Kowloon East. Segiu de perto as manifestações contra a implementação da legislação do artº 23 da Lei Básica, e conheceu alguns elementos do grupo da pan-democracia de Hong Kong, que viram nele potencial e de quem se tornaria uma espécie de "mascote". Em 2011, com apenas 14 anos, fundou com o amigo Ivan Lam uma associação onde os estudantes podiam debater livremente política, e depois de se tornar conhecido pela sua oposição à Educação Patriótica, foi parte activa do movimento que exigia a demissão do Chefe do Executivo C.Y. Leung. E sim, é levado a sério, e mais do que se apresentar como uma "ameaça", consegue impôr respeito à elite governativa de Hong Kong. De outra forma como ia conseguir o apoio para o seu documentário, que até já chegou à atenção da imprensa internacional?


Isto pode parecer tudo um pouco surrealista, mas se há algo que não bate certo é o facto de um pirralho que nem barba tem faça o trabalho de adultos que preferem continuar calados perante casos de injustiça e desigualdade, e permitem que continuem sempre os mesmos a comer o arroz fragrante às tigelas cheias, uma à seguir à outra, enquanto a malta tem que se contentar com trinca da mais ordinária. Não sei se o viram hoje no Telejornal da TDM, com aquele ar de mosquito eléctrivo debitando retórica que mais parece uma grafonola, em alto e bom som, como quem levou uma lavagem cerebral, só que ao contrário. And so what? Temos aqui um rebelde com causa, que até considero justa, apesar de por vezes se diluir num certo exagero - por enquanto ainda não entrou pelo caminho do disparate, mas ainda é muito novo. Um adolescente que quer participar no debate político, e se este não existe, procura estimulá-lo, nem que para isso vá fazer frente aos que querem silenciar a voz dos oprimidos, merece pelo menos o benefício da dúvida, e falo apenas por mim, claro. Se "tamanho não é documento", porque é que a idade havia de ser?


O que eu lamento é os "Joshuas" de Macau serem tão vazios de ideias e tão amorfos que até metem dó. Este Joshua Wong terminou este ano o ensino secundário e pensa ir para a universidade, e à boa moda da velha sabedoria oriental das artes marciais, quer encher a cabeça de conhecimentos para que fique suficientemente dura, e só depois se mandar de cabeça contra os muros da contrariedade - e com o currículo que tem, vai encontrar muitos desses muros, a começar por uma universidade da região que o aceite. Muitos dos graduados do ensino secundário que temos por estas bandas, alguns deles já com idade e corpinho para se fazerem à vida, andam aí aos caídos, pelas casas de video-jogos e cibercafés, a depender dos pais e à espera dos 21 anos para se poderem encaixar num casino qualquer, onde mesmo assim dependerão da família, pois nunca nos seus sonhos mais húmidos vão poder comprar habitação própria.



Ao contrário do que muitos dos leitores que me seguem há mais tempo possam pensar, não sou um entusiasta dos movimentos pró-democracia das duas RAE da R.P. China (especialmente a versão dde Hong Kong), e se por vezes demonstro o meu apoio às iniciativas destes grupos ou voto assumidamente no Novo Macau nas proto-eleições onde nos é permitido ter uma palavra a dizer, isto deve-se apenas a uma questão de coerência. Se eu vou votar, sendo o voto um dever cívico e ao mesmo tempo um direito, é também uma expressão política: e por "políticos" ou "políticas", nestas bandas só consigo encontrar vestígios nestas associações, de gente que pensa, que lê e que se informa, que tem um pouco de cultura e se rege por valores remotamente humanistas. Gente nova e difetente que acredita no cumprimento das liberdades inerentes ao segundo sistema, em vez de se acobardarem com estórias de cucas, papões e bruxas más. Aposto que a primeira coisa que muitos espertalhões pensaram quando viram Joshua Wong pela primeira vez foi "não vai ter ninguém que lhe dê emprego". Esta afirmação que julga ter um carácter de pragmatismo revela na verdade que são uns  vendidos, e que se vendem por muito pouco. Participação cívica e interesse pelo futuro que vamos deixar aos nossos filhos "não dá emprego". O melhor é comer caladinho.


Vou cometer um pequeno desabafo, que não é nenhum segredo: se escolhi ficar em Macau em 1999, foi porque me agradou o que estava estipulado no texto da Lei Báscia no que toca a direitos e garantias - e para interpretar para mais, e nunca para menos. E sendo assim, sinto-me no direito de puxar para o lado de quem tal como eu acreditou no mesmo, ou pelo menos espera a sua aplicação no essencial, se não poder obter a interpretação presente no espírito da lei, que se inclina para uma crescente democratização, ou se preferirem flexibilização do sistema. Deixar a Lei Básica a curar como um queijo, ou a macerar numa pipa tal como o bagaço e não lhe tocar para não estragar, é estar-nos a enganar. Não existe nesta mini-constituição uma rigidez que nos proíba disto ou daquilo, ou que nos impeça de a alterar para melhor, consoante o progresso da sociedade. É claro que o artigo 23, que em Macau passou que nem uma enguia gosmosa num lago de gelatina besuntado com sebo, não me diz muito, uma vez que sendo português, nunca poderia trair um país que não é meu, mas obviamente que me preocupo com o bem-estar e a felicidade daqueles que como eu são residentes de Macau, e que têm os mesmos direitos e deveres que me são conferidos.


Tanto o exemplo deste Joshua Wong, aqui ao lado em Hong Kong, quer Jason Chao, Scott Chiang, Sulu Sou e muita outra malta nova podem parecer para muitos mais um acto de circo do que uma coisa séria. É que somos gente experiente e treinada para detectar a olho nu o que é realmente uma conduta orientada pelos valores democráticos e a mera pantomima, e ouvidos que facilmente distinguem um discurso sério com conteúdos válidos da mais pura das demagogias. Pode parecer uma brincadeira, mas sei que muitos respeitam Ng Kwok Cheong e Au Kam San, e dão-lhes crédito pela firmeza com que se bateram pelos seus ideiais, resistindo a ceder às investidas de quem lhes ofereceu luxo e conforto na tentativa de os silenciar. Se existe um fosso, evidentemente geracional e provavelmente ideológico entre a ala tradicional e esta juventude irrequieta, a culpa é nossa, que estamos no fosso entre os dois, e não nos apeteceu mexer um dedo. Envergonha-me que ainda antes de completar os meus 40 anos, 21 deles passados em Macau, venha um puto de Hong Kong com idade para ser meu filho mostrar que tem mais tomates que eu. Que nós, não se fiquem por aí a rir.

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