sábado, 2 de agosto de 2014

Os patriotas e os "scuds"


É assim, "pipol", vou passar o fim-de-semana fora, e para vos deixar entretidos com qualquer coisa para lerem (não vão depois querer tirar uma "selfie" e ainda acabam mortos ou matam alguém, ah, ah) ficam aqui o artigo desta quinta-feira do Hoje Macau, que até dizem que é bom para saúde e tudo. Quem sabe se não previne a doença do vírus do Ébola, hã? Então até amanhã, e passem um fim-de-semana ao fresco, que este calor é de subir pelas paredes. Salut!

“Patriota: indivíduo a quem os interesses de uma parte parecem superiores aos interesses do todo. O joguete dos estadistas e a ferramenta dos conquistadores.”

Ambrose Bierce

A palavra “Pátria” tem para nós, portugueses, uma conotação que ainda faz com que se levantem muitas sobrancelhas de espanto. A culpa foi de um certo santacombadense que em tempos usou e abusou da palavra para dar consistência à sua versão muito própria de unidade, de nação, de soberania, apelando aos jovens lusos que numa ocasião por volta do inícios dos anos 60 do século passado “dessem a vida pela Pátria”, na Guerra do Ultramar. Um apelo tem por vezes o valor de uma mera sugestão, ou de um convite, mas neste caso escutava-se o chamamento da Pátria, que era assim como um daqueles apitos silenciosos que emitem uma frequência que só os cães conseguem ouvir. O que se ganhava em “dar a vida pela Pátria”? Logo se via. E recusar? Isso via-se logo. Era um pouco aborrecido não poder escolher o que se fazer com a vida, que é só uma, deixada assim nas mãos de uma das muitas Pátrias que há por esse mundo.

A Pátria é um conceito abstracto, tal como a alma, a paixão, ou dando-lhe um sentido mais formal, a República, personificada amiúde por uma jovem com os seios de fora. E falando de seios e de paixão, por estas bandas ouve-se muito a expressão “amar a Pátria”, ou a sua variante “amor à Pátria”. Apesar disto nos soar um pouco a “dejá vu”, pois já sentimos na pele essa imposição da parte da Pátria, é uma coisa que parece ser bem recebida pela generalidade. Qualquer caramelo que inicie um discurso com uma referência ao “amor à Pátria”, e termine dizendo que “ama a Pátria”, é tido como um fulano às direitas – mesmo que pelo meio não tenha dito nada de jeito. Pode revelar a maior ignorância e desprezo pela inteligência de quem o escuta, indiferente às suas patrióticas introdução e conclusão, mas ai de quem fale mal dele: afinal, “ama a Pátria”.

Eu tenho um problema lexical com isto de “amar a Pátria”, tal como o Executivo local tem andado um pouco baralhado nos últimos tempos com uma certa interpretação da palavra “referendo”. Para mim amar é uma coisa séria; posso gostar, estimar, respeitar, sentir consideração ou querer saber notícias de alguém, mas amar é outra cena, meu. O que entendo por “amar” implica o acto físico do amor. Quando oiço “amar a Pátria” e coloco a mim mesmo essa possibilidade, imagino-me numa cama redonda e larga, com lençóis de seda, a beijar apaixonadamente a “Pátria”, afagando-lhe os cabelos com uma mão e explorando com a outra as suas partes pudibundas, antes de avançar determinado para aquilo que a Pátria ela própria fazia com aqueles jovens lusitanos que mandava para o Ultramar para darem por ela a vida.

Mas consideremos para efeitos dramáticos (e para não acabar por aqui o artigo) que isso de “amar a Pátria” é uma coisa mesmo séria, mesmo que saindo da boca de alguns chalaceiros destas bandas dê vontade de pelo menos dar uma risadinha marota. Os que amam a Pátria são chamados de “patriotas”, e assim partilham o nome com um sistema de lançamento de mísseis, e com o próprio míssil, bastante na berra durante a primeira Guerra do Golfo – pode-se mesmo dizer que quem não ama a Pátria e não é patriota, é um “scud”. Mas quem não sente amor pela Pátria, que se “scud”, pois aqui isto tem mais valor do que um argumento com pés e cabeça, ou que uma boa ideia, com potencial para surtir efeitos práticos e positivos. Basta vir com uma besteira qualquer, e no caso de alguém discordar atirar com um “você não ama a Pátria?”, e todos os burros baixam de imediato as orelhas.

De orelhas levantadas e sempre alerta, qual escoteiro, está a ex-presidente da Assembleia Legislativa, Susana Chao, que depois de deixar o cargo de moderadora no hemiciclo da RAEM, veio fazer-me companhia nas lides bloguísticas. Desconheço o nome do seu blogue, todo ele em língua chinesa, mas bem podia ser “Lavandaria Jolie”, tal é a quantidade de roupa suja que por ali passa. Um destes dias, numa das suas habituais diatribes contra os seus antigos colegas e cúmplices, chegou a sugerir que a maltósia democrata que foi fazer chinfrim para a porta da AL há dois meses “são verdadeiros patriotas”, ao contrário de outros que assumem como tal, e deu o exemplo de um tal Ao Man Long, que depois de me socorrer dos livros de História antiga, fiquei a saber que se tratava de um patriota que passou a “scud” com a mesma ligeireza com que azeda um “tao fu fa” deixado ao sol a tarde inteira.

Posso achar o que Susana Chao faz no seu blogue de uma deselegância e baixeza extremas, vil, mesquinho, próprio de uma pessoa vingativa e ingrata, mas não posso deixar de concordar com ela num aspecto: o verdadeiro patriota é aquele que luta pelo melhor para si e para os seus irmãos, e nem que para isso tenha que sacudir o sistema e todos o que dele tiram partido, “à mama” da mãe Pátria – e nem chama isto “patriotismo”, mas sim “justiça”. É que por muito que os patrioteiros de trazer por casa digam cheios de bazófia que “amam a Pátria”, no fim ela acaba por confrontá-los, e de mão na cintura a cara de poucos amigos, vocifera: “Muita lábia tens tu, mas o que tens feito aqui pela Pátria, afinal?”.


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