quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O presente e o passado: Chui faz a recruta


Macau comemorou hoje pela primeira vez o aniversário da vitória da China sobre o Japão na Guerra do Pacífico - correcção, a vitória dos aliados, onde se encontrava além da China Nacionalista, a União Soviética, a Austrália, além dos Países Baixos, através da guarnição estacionada nas Indias Holandeses (actualmente Indonésia) o Império Britânico, representado na India, Birmânia (actual Myanmar) e Malásia Britânica, e claro, os Estados Unidos, sem os quais a vitória nunca seria possível frente às fortíssimas tropas do país do sol nascente. Para que se tenha uma ideia, os oito anos de guerra provocaram 4 milhões de soldados mortos do lado dos aliados, e apenas dois milhões do lado dos japoneses, que contaram com a ajuda do reino do Sião, a Tailândia. Em termos de baixas civis foi o que se sabe, com o exército imperial japonês a cometer uma das maiores matanças da História, deixando atrás de si um rasto de destruição, mais de 25 milhões de mortos, entre crianças e mulheres, que seriam também feitas escravas sexuais, e o território chinês seria o mais fustigado. No Japão as mortes entre os civis contam-se na ordem menos de um milhão, e para tal contribuiu decisivamente a entrada dos norte-americanos no conflito, após o ataque a Pearl Harbour, no Hawaii, em Dezembro de 1941 - tivessem os japoneses deixado Pearl Harbour em paz, e estariamos agora a falar japonês, muito possivelmente. A guerra ficaria apenas resolvida com o lançamento da bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki (para quem não sabe, hoje em dia estas são cidades desenvolvidas e habitáveis), e a 14 de Agosto terminava a guerra, com a assinatura do armistício a 2 de Setembro seguinte, a bordo do navio US Missouri, ancorado na baía de Tóquio. Passaram ontem 69 anos.

É um pouco difícil de entender o porquê da República Popular da China comemorar esta data com pompa e circunstância, uma vez que as tropas chinesas eram lideradas quase na totalidade por nacionalistas com ligações ao Kuomitang, e próximos de Chang Kai-Shek, sendo a única excepção o general Peng Dehui, que ainda exerceu o cargo de ministro da defesa entre 1954 e 1959, no governo de Mao Zedong. Juntando a isto temos o facto dos Estados Unidos terem sido decisivos para resolver o conflito, e apenas os norte-americanos tinham a capacidade para fazer frente às tropas imperiais lideradas por Hirohito, que ao render-se terá afirmado: "colocar um fim à guerra evita a obliteração do Império do Japão, e possivelmente da civilização humana". A China passou por um período complicado de 1945, e só com a fundação da República Popular por Mao, quatro anos mais tarde, conseguiu a tão almejada autonomia. Japoneses, nacionalistas, norte-americanos e demais forças estrangeiras foram sempre um alvo predilecto da retórica do partido único, mas seria apenas bem mais tarde que se pôde assinalar esta data olhando o antigo inimigo olhos nos olhos. e pedir-lhe explicações, o que vem sendo feito até hoje. E não é por acaso, pois durante os oito anos de ocupação japonesa, morreram mais de 20 milhões de chineses, 400 mil deles através de experiências em armas biológicas, e mais de 200 mil mulheres, quer chinesas, quer coreanas foram obrigadas a prostituir-se, adquirindo a designação que hoje conhecemos por "mulheres de conforto". Este passado humilhante para a nação chinesa é recordado amiúde pela nomenclatura em Pequim, que repudia o facto dos japoneses se recusarem a rever a versão do conflito que ainda hoje é ensinado nas suas escolas, que minorizam a agressão, e fica especialmente irritada quando altas entidades do governo nipónico visitam o templo de Yasukuni, um santuário privado onde desde finais dos anos 70 um monge radical decidiu introduzir ao culto o nome de criminosos de guerra.

Provocação aqui, provocação ali, nem o Japão representa hoje uma ameaça à região Ásia-Pacífico, nem a China está interessada num conflito armado. Tudo se resolve nos gabinetes, mais um negócio aqui, outro ali, e caso a China se queira colocar numa posição vantajosa para negociar, basta acenar com o passado, e isto tornou-se mais evidente com a disputa das ilhas Diaoyu, ou Senkakku, para os japoneses. Este arquipélago desabitado mas rico em recursos naturais foi "esquecido" na hora de devolver à China os territórios ocupados pelo Japão, e só com um poderio militar à altura pode hoje o governo de Pequim falar alto, e tem falado bem alto. Os sinais que chegam de Tóquio são no entanto difusos, e as esporádicas visitas ao tal templo de Yasukuni demonstram que não existe propriamente um medo da China. Até porque, e ironicamente, os Estados Unidos, a chave s solução para a Guerra do Pacífico, estão do lado do inimigo de então, o Japão, olhando para a China de hoje como uma potencial ameaça. Com os americanos a espreitar em Okinawa, Pequim apela ao "patriotismo", tanto como uma voz que se faça ouvir para lá do mar amarelo, uma prova de unidade do povo chinês que não se esquece da agressão dos anos 30 e 40, como um barómetro para a própria China medir o apoio da população ao regime. Isto pode-nos parecer "kitsch" e até pouco ameaçador, na linha do nacionalismo extremo, mas é preciso entender que num sistema autocrático e totalitário, onde não existe oposição e quaisquer dados recolhidos estariam provavelmente viciados, a melhor de forma saber se as massas estão com eles, é agitando-as. Este processo é mais ou menos mecânico, pois basta recordar as atrocidades cometidas pelos japoneses, entregar meia dúzia de bandeiras, e os patriotas saltam como uma mola. Ultimamente isto tem gerado um efeito ricochete, pois alguns grupos dissidentes (sempre residuais, claro) aproveitam para se juntar aos protestos - algo raramente autorizado - e causar tumultos. Uma daquelas situações que se torna difícil de prever (e medir), mas a que a China estará certamente atenta.

E onde entra Macau em tudo isto? O território que na altura da Guerra do Pacífico era uma colónia portuguesa, e como tal beneficiou da neutralidade de Portugal na II Guerra Mundial, tornando-se em algo que eu não chamaria um "oásis", mas sim um "abrigo". Com os japoneses em controlo da totalidade do sul da China e de Hong Kong, Macau estava praticamente isolado, e chegavam todos os dias refugiados do continente, que foram (ou ainda são, os que vieram pequenos) os pais e o avós dos actuais "oumunyan", os chineses de Macau. A situação era bastante complicada, pois faltavam alimentos, pois o racionamento não era suficiente para acomodar a população que ia crescendo durante a guerra, procurando ficar a salvo das bombas. Era frequente encontrar cadáveres nas ruas, recorria-se ao canibalismo, mas mesmo assim era preferível ao mal que se encontrava do outro lado. Não tinhamos os japoneses a violar mulheres ou a espetar bebés nas baionetas, mas tinhamos agentes infiltrados, normalmente chineses traidores da Pátria, que aqui e ali iam semeando o terror. A guarnição portuguesa fazia o mínimo para manter a ordem, temendo os cem mil soldados japoneses estacionados depois das Portas do Cerco, e Lisboa estava lá longe, impotente para acudir a alguma eventual emergência. Estes tempos da guerra em Macau ficaram documentados os por Leonel Barros no seu livro Memórias do Oriente em Guerra - Macau, uma leitura bastante acessível, sucinta e precisa, relatando mesmo alguns factos presenciados pelo autor, que era na altura soldado ao serviço do exército português. Também o Padre Manuel Teixeira, que vivia em Macau no início dos anos 40, deixou a espaços alguns manuscritos sobre a ocupação japonesa do sul da China.

Foi durante a guerra e nos anos que se seguiram que surgiram as "famílias" cujos descendentes compõem actualmente a elite dirigente e empresarial de Macau. Já com o Partido Comunista no poder, formaram-se as primeiras associações de patriotas, com Ho Yin, pai de Edmund Ho, primeiro Chefe do Executivo da RAEM a assumir-se como líder da comunidade chinesa, e Ma Man Kei, presidente histórico da Associação Comercial, onde viriam a aparecer outros nomes como Fong Man Kan e Chui Tak Seng, construtores civis e pais de Fong Chi Keong, actual deputado da AL, e Chui Sai On, que foi reconduzido no Domingo no cargo de Chefe do Executivo. Independentemente do tipo de regime que vigorava em Pequim, estes tinham em Macau a sua "base de operações", e o governo colonial português como némesis. Antes e depois dos incidentes que ficaram conhecidos por "1,2,3", onde a soberania portuguesa do território ficou ameaçada pelos excessos da Revolução Cultural e do seu impacto em Macau, estas elites chinesas funcionavam como "sócios" do poder colonial, e a partir dos anos 70 passaram a dominarar praticamente todos os negócios mais lucrativos. Sendo indispensável manter uma boa relação com Pequim, estes líderes foram durante anos obrigados a engolir muitos "sapos vivos", obrigados que eram a "bater a pala" a um sistema que não lhes interessava mesmo nada, e que a acontecer em Macau significaria (pelo menos em teoria) a expropriação dos seus bens a favor do estado. Foi-se conseguindo o equilíbrio que os manteve nas boas graças de Pequim e na lista dos concessionários da Administração Portuguesa, enfraquecida primeiro pelos tumultos do "1,2,3", e alguns anos mais tarde pela sua própria revolução, o 25 de Abril de 1974. Depois das negociações que evitaram que Macau fosse imediatamente entregue à China na sequência do processo de descolonização, criou-se o estatutto de Macau como "Território chinês sobre administração portuguesa", e o regresso à Pátria seria uma inevitabilidade.

As "famílias", ou "clãs" foram mantendo-se fiéis a Pequim, debitando aqui e ali uma outra alarvidade quanto aos portugueses, para "ficar bem", incluíram a noção de "ocupação estrangeira" e "amor à Pátria" nas escolas chinesas, e quanto ao Japão, ia bem obrigado. Sem o peso da História que os chineses recordam cada vez que se lembram do massacre de Nanquim ou da tomada da Manchúria, os nipónicos foram sempre um parceiro de negócios, e nos anos 80 era do país do sol-nascente que vinham muitos dos turistas que iam garantindo a saúde financeira, nomeadamente a da indústria do jogo. Depois de 1999 pouco mudou, a interferência do Governo Central nos assuntos de Macau e de Hong Kong foi-se mantendo no mínimo indispensável (pelo menos oficialmente), mas os últimos meses valeram aos "clãs" uma reprimenda da "mãe Pátria", que precisou de vir a público deter as pretensões consideradas "subversivas" por parte do que consideram "inimigos a soldo de potências estrangeiras inimigas". Quem quiser tirar uma intepretação política da cerimónia de hoje em que Chui Sai On participou, e que ainda para mais coincidiu com o seu terceiro dia como IV Chefe do Executivo, pode ser mesmo essa: recordá-lo quem são as tais "potências estrangeiras" que deve ter em atenção, e de que tanto custou à China sair do seu jugo em 1945. A população de Macau estranhou a lição de patriotismo, e o próprio CE não estava lá muito à vontade com esta cerimónia que para ele deve parecer "retro" - eu pessoalmente considero-a uma comemoração válida, mas quem sou eu, e que peso tem isto para mim? Se Chui Sai On não foi "à tropa", então considere este momento a sua "recruta", e quem sabe se o toque de despertar para que não se esqueça que tem pela frente cinco anos de muito trabalho, e tempo perdido para recuperar - e Edmund Ho também lá esteve, que isto também lhe diz respeito. Quanto a nós, a plebe, julgo que se vai manter o mesmo sentimento pelo Japão, que os "oumunyan" elegem como um dos destinos de férias preferenciais. Não se admirem é se na próxima manifestação pela soberania das Diaoyu, ou após outra romagem do executivo nipónico a Yasukuni, seja mais visível a verve "patriótica" aqui em Macau.

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