quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Voa(mos)



Voámos. Não, espera, voei. Apenas eu cruzei os céus na direcção do infinito, só, distante, um sonhador inveterado, um Ícaro, ou um seu semelhante. Quiseste ficar, mas disseste que vinhas também. Juntos abrimos as asas e eu, convencido que te tinha do meu lado, parti para o sol. Oh como tudo ia ser tão bom, que já me parecia um sonho. Como sentia já na boca o teu doce nectar, qual colibri a beijar os lilazes.

Não quiseste vir, enfim. Deixaste que fosse eu solitário ligeiro de encontro ao incandescente astro. Ao ver-me chegar, tão crédulo, tão iludido, rasando o firmamento decidido, corpo hirto e braços esticados atrás das costas que mais lembrava um homem-bala, Xihe (羲和) sorriu, um sorriso comiserado perante a audácia do sonhador, e num pequeno sopro fez tombar o aeronauta. Apenas um sopro, nada mais, e em queda livre desceu o anjo, e sem os teus braços para o aparar, caíu, quase sem produzir um som, e tudo o que se ouviu foi um baque seco, anunciando o fim da ilusão.

Ainda sonha, aquele anjo caído, ali deixado jazendo inerte para todo o sempre, que todos esqueceram pois quis deixar a vida nas tuas mãos - e de quem mais ia precisar ele, afinal? Permanece imóvel, ali, abandonado, mas nos seus lábios dá-se o contraste de todo aquele cenário tao lúgubre: um sorriso, ou pelo menos um esboço. Porque sorri ele? Com que sonha? Sonha que ainda voa, livre e despreocupado, rasgando a direito pelo anil do céu? Não, não sonha que voa. Voamos. Se não te pode ter do seu lado neste mundo, voa contigo num sonho lindo, de que nunca mais quer acordar.

Leocardo, 10/09/2004 (será...?)

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