domingo, 19 de outubro de 2014

A ditadura da democracia



Depois de dois dias "de molho" (isto de ser um "blogger" constante tem o seu preço) vou paulatinamente recuperando a cadência das publicações regulares no Bairro do Oriente. Para colocar um ponto de ordem nada como o artigo de quinta-feira do Hoje Macau (edição electrónica não disponível), e desejar a continuação de um bom fim-de-semana.

Gostava de começar por contar um episódio que se passou comigo durante um fim-de-semana que passei em Guangzhou, estavam em finais de 1999, se não estou em erro. Visitava a cidade na companhia de uma amiga ali residente, e aproveitando essa vantagem optava por me deslocar nos transportes públicos, ou de metro, que na altura tinha sido recentemente inaugurado, ou de autocarro. E foi num das curtas viagens neste último que aconteceu algo curioso; vinha de pé a conversar com a minha cicerone, quando noto que todos os restantes passageiros nos olhavam, e quando digo “olhavam” quero dizer “fitavam”, sem qualquer pudor, como se quisessem deixar bem claro que eu era a razão da sua curiosidade. A minha parceira aparentava estar um pouco embaraçada, temendo que eu, a quem ela tinha convidado, desprezasse a atitude dos seus compatriotas, e de facto naquela situação só haviam duas saídas: ou ignorava, ou demonstrava desconforto, o que em qualquer das situações daria a entender ressentimento da minha parte. Assim optei por uma terceira via: cantei o tema “Baila Me”, dos Gypsy Kings, acompanhado de palmas. Nesse momento as mulheres voltam-se para a frente de repente, como se nunca estivessem estado interessadas, enquanto os homens sorriam, e começavam a dar-me o meu espaço – estavam todos “servidos”.
Este sorridente incidente serve para demonstrar que nem tudo o que nos ensinaram sobre tolerância e respeito pela diferença é definitivo. Aqui há uma conclusão que se pode tirar em dois segundos sem ser necessário qualquer método científico, estudo de opinião ou medição do grau de acidez: eu sou um ocidental, sou diferente, venho de um mundo que nada tem a ver com aquele, e é suposto manifestar comportamentos inaceitáveis para os padrões da cultura chinesa, e de preferência com uma boa dose de extravagância, para satisfazer o publico mais exigente. No fim vão todos para casa, convencidos que tudo o que aprenderam sobre a civilização ocidental estava certo - afinal valeu mesmo a pena comprar a série completa das aventuras do Mr. Bean.
A civilização milenar chinesa transmitiu de geração para geração durante séculos certos conceitos que para nós, "bárbaros" ocidentais, são difíceis de assimilar, e nem o mais dedicado ou erudito dos sinólogos chega a entender certas valências que apenas a consanguinidade transporta de pai para filho, e de filho para neto; podem-se apanhar todos os ovos e metê-los no mesmo cesto que ficou a faltar um. Qual? "Aquele que estava escondido". Mas como era possível apanhá-lo se estava escondido? Exactamente. E isto tudo para dizer que há coisas que não entendemos porque não é suposto nos serem dadas a entender. Não me peçam para dizer quais, que não sou capaz. Não sou nem nunca serei capaz, e propor-me a resolver um enigma de 5000 anos que se vai tornando ainda mais difícil de resolver a cada duas peças que consigo juntar é tirar a arrogância da toca, esfolá-la, curti-la e andar com ela ao pescoço. E quem melhor para ostentar a arrogância que os Estados Unidos, que garantem ao império do meio que a democracia é a cura para todos os males, desde o síndroma do partido único até à ditadura encravada. E como sabem eles isso? Porque já praticam a modalidade há 200 e tal anos, e nunca provaram outra coisa. É verdade que tiveram os seus altos e baixos, e ganharam um número respeitável de inimigos, mas quem possivelmente pode odiar o "berço da democracia"? Ora, os “inimigos da liberdade“, lá está: árabes, comunistas, índios, escravos africanos...

Foi então que alguns académicos em Hong Kong decidiram que a melhor forma de trazer esta receita para sarar o mal do totalitarismo no mais populoso país do mundo seria usar a RAEHK, onde são permitidas liberdades que o continente não tem, como laboratório. Faz sentido; logo que estes sete milhões de “oprimidos pelo regime” aceitem a nova ordem, os outros mil e tal milhões caem como tordos. E aqui temos o cenário ideal, pois segundo um desses teóricos da democracia americana, que assistiu de perto a revoluções recentes, como a final do Superbowl ou a corrida aos saldos do Wall-Mart, “se a Mongólia, com uma economia menos competitiva, conseguiu implantar um regime democrático, porque não Hong Kong, uma grande praça financeira?”. Já se sabe que para os americanos pouco importa se estamos a falar da Mongólia, Hong Kong ou Botswana: todos querem ser iguais à América, todos querem cartões de crédito, roupas de marca, tota-tola e malbóros. Ai já têm isso tudo? Então que tal substituir essa coisa do partido único, que já cheira a mofo, por uma “democracia parlamentar”? É simples: consiste de meia dúzia de corporações a mandar em tudo, “lobbies” que fazem a ligação entre o poder e os que se portam bem, atendendo assim às suas necessidades, e mesmo que haja quem não esteja satisfeito tem “liberdade de expressão”, podendo assim rir dos gajos quem mandam, enquanto estes riem deles, e no fim todo riem! É só rir.

E a este ponto já me estão a acusar de ser contra o movimento “Occupy Central” em particular e contra a democracia em geral. Quanto ao primeiro não sou contra nem a favor, pois nunca fiquei a saber qual era o fim. Democracia, dizem vocês? A ideologia ou o sistema? Se for a ideologia, tudo bem, qualquer criança de quatro anos ou ave psitaciforme consigue debitar chavões como “poder exercido pelo povo” ou “vontade da maioria”, mas se me falarem de “sistema democrático”, a coisa muda de figura. É que para se chegar a esses píncaros, é necessário algo que se chama “consciência democrática”, que consiste aceitar todas as opiniões – mesmo as que vão contra o próprio conceito de democracia. Quando se tenta impor a democracia através de um movimento que representa uma minoria, utilizando para o efeito a “desobediência civil” inspirada em Gandhi, e mesmo assim se entra em confronto com as autoridades, deixem-me dizer-vos que é um mau começo. Nem as imposições, nem as minorias são uma base sólida para se começar uma democracia, e Gandhi não chegou lá andando à porrada com a polícia. E quem propõem para dirigir esta “democracia à chinesa”? O adolescente Joshua Wong ou aquele gajo super-coerente, o “long-hair”, que se opõe a uma ditadura de matriz marxista-leninista mas ostenta a imagem de Che Guevara na camisola, personagens uni-dimensionais, tal como o “kwai-lou” que ia naquele autocarro em Guangzhou há 15 anos? E quanto aos tipos que agora estão no poder, o que vão fazer com eles? Metê-los na prisão ou fazer a coisa mais democrática, que seria realizar eleições em conjunto? Prisão? Pois, pois, já entendi. Prisão em democracia é melhor do que numa ditadura. Então não, coração.

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