sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Os sonhos e as cinzas



Artigo de quinta-feira do Hoje Macau.

O incêndio que tirou a vida a quatro trabalhadores não residentes a semana passada na zona do Porto Interior tem sido o mote para um debate mais alargado sobre outras questões, e tem dado pano para os mais variados tipos de mangas, golas e decotes. Abstive-me de falar deste tema por uma razão muito simples: uma das vítimas era minha amiga, que posso mesmo considerar íntima, e a proprietária da loja que ficou em ruinas é também alguém que trato sem grande cerimónia, apesar da barreira linguística. Vivi até há alguns meses a poucos metros do local da tragédia, era visita frequente, quase como se fosse “da casa”, e apesar de me ter afastado – sobretudo por razões de logística – não pude deixar de ficar emocionado, mais até do que é habitual, no meu caso. Decorridos oito dias, e praticamente tida como certa a possibilidade de ser ter tratado de um trágico e lamentável acidente, gostaria agora, de cabeça mais fria, elaborar sobre alguns pontos do muito que se tem dito e escrito sobre o caso, e já agora permitam-me um pequeno desabafo: tenho lido e escutado muita merda.

Primeiro, como já referi, conhecia bem o local do sinistro, e posso garantir, digam o que disserem, que não se tratava de nenhum covil para onde eram atirados trabalhadores não-residentes (TNR), obrigados a viver em condições desumanas, como chegou a ser dado a entender – ninguém era obrigado a morar ali, sequer. Ainda não reuni a coragem para contactar a dona da loja para lhe transmitir uma palavra de carinho nesta hora de desespero, pois além de perder o negócio, perdeu a sua melhor amiga. A vítima deste desastre, e de que ambos lamentamos a partida, mantinha com ela uma relação que ia muito além do vínculo laboral que as ligava: eram quase como irmãs, e isto é algo que pode ser confirmado por vizinhos, amigos e conhecidos. A loja nem era o mais importante, pois era alugada, e na última mensagem que recebi da vítima, no último dia do mês passado, estariam a preparar-se para encerrar o negócio, e ela própria tinha planos para regressar ao seu país já em Janeiro. O facto de se tratar de uma loja de pronto-a-vestir, estarem em mudanças e possivelmente existirem sacos com roupa no chão ajuda a explicar a rápida propagação das chamas, mas não explica tudo. Se formos analisar o caso do ponto de vista da segurança, basta olhar para os prédios com cinco ou menos andares construídos há vinte ou trinta anos para concluir que grande parte da população dorme todos os dias em cima de um barril de pólvora. Não há fiscalização obrigatória das condições em que se encontram estes edifícios, onde a única saída é a mesma porta por onde se entra, e quem tem grades nas janelas ainda se pode dar por satisfeito, pois em muitas destas moradias não entra qualquer luz natural. Sobre o estado das instalações eléctricas, basta olhar para o estado do quadro das campainhas logo à entrada do prédio para perceber que se está aqui a brincar com o fogo.

Mas de um modo mais abrangente, estas mortes tão inusitadas quanto horríveis serviram para reacender o debate sobre as condições de vida dos TNR, as dificuldades destes em encontrar alojamento, e já na esfera do surrealista, o problema do preço da habitação em Macau. Não entendo que cabimento tem incluir na equação da especulação imobiliária pessoas que na maior parte dos casos vêm para o território trabalhar com o único objectivo de enviar a quase totalidade do vencimento que auferem para o seu país de origem, onde em muitos casos há bocas que dependem exclusivamente desse dinheiro para comer, vestir e estudar. O que não encaixa em algumas cabecinhas auto-intituladas pensadoras – e que disso têm tanta cagança – que consideram “desumano” que hajam oito, dez ou doze pessoas a morar debaixo do mesmo tecto, é que nem toda a gente está em Macau à procura de conforto. Nem todos entendem conceitos como “qualidade de vida”, que para estes passa por morar num apartamento com uma sala do tamanho de um campo de ténis, e depois conjecturam sobre “onde vai isto parar” quando lhes aumentam a renda de 12 para 15 mil patacas, mas não ponderam ir morar para uma casa mais pequena, onde pagariam metade desse preço, ou menos – mesmo aqueles que vivem sozinhos.

Há quem não consiga imaginar-se a viver com mil patacas por mês; como é isso possível, se é o que gastamos em quase nada – basta ir jantar fora dois dias seguidos. Porque é esse o valor que damos a mil patacas, enquanto nas Filipinas, por exemplo, chega para dar de comer a uma família de quatro durante um mês. Claro que não estou a falar de Manila e arredores, nem das Boracais, Puerto Galera, ou Bibó Puerto carago, ou outro destino de férias. Falo do interior, daquilo que eles chamam de “bundok”, o país real, onde mil patacas é um salário médio, e onde a palavra “desemprego” é uma forma erudita de descrever uma situação banal: não há trabalho, há que sobreviver, pôr comida na mesa e depois de cada refeição pensar de onde virá a próxima. Ali, de onde é originária grande parte dos TNR das Filipinas que temos em Macau, também é comum encontrar mais que uma família a partilhar o mesmo chão, e digo “chão” porque é no chão que dormem, deitam-se antes das dez da noite e acordam com o sol no dia seguinte. Colchões, almofadas e ar-condicionado são luxos que só vêm encontrar em Macau. Se já lá estive para saber se é assim? Por acaso já, e também já vivi com filipinos em Macau, seis na mesma casa, oito aos fins-de-semana, às vezes mais, quando aparecia alguém que pedia para passar lá uma noite, e improvisava-se um cantinho qualquer na sala. E isto foi durante mais de um ano, entre 1995 e 1996, e tal como hoje, há vinte anos também viviam vários no mesmo apartamento.

Seria muito desaforo da minha parte dizer que não se cometem abusos, que não há TNR explorados, maltratados e enganados. Há, claro, e há ainda os que sabem muito bem para aquilo que vêm, outros que no fim do mês tiram do salário o suficiente para pagar as contas e mandam o resto para casa. Como vivem? Assim, através da camaradagem de outros, umas vezes isto corre bem, outras mal, ou de expedientes como o sub-arrendamento. É ilegal? Mandem-nos ter formação jurídica. Só não esperem é que estejam lá os senhorios a inspeccionar quantos passam lá a noite. Se lhes aumentarem o subsídio de residência, pode ser até uma medida justa, mas o mais provável é que mandem esse dinheiro extra para a família, e não o invistam em “melhores condições de habitação”. E reparem que falamos de filipinos e indonésios, que juntos não devem ser sequer metade do total de 150 mil TNR em Macau. São certamente o elo mais fraco, os excluídos desta economia pulsante alimentada pelos lucros dos casinos, certo? Certo, se não contarmos com os operários da China continental, que depois de um dia nas obras só querem mesmo uma cama para se estenderem, e pouco importa que seja um beliche num quarto que partilham com mais sete ou oito, e casa-de-banho comum. A isto chama-se “sobrevivência”, um teste que uma querida amiga não conseguiu passar, para ver agora a sua derrota ser usada como bandeira pelos motivos errados. Triste, triste…


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