sábado, 10 de janeiro de 2015

A autópsia do terror




Cherif e Said Kouachi, de 32 e 34 anos de idade, respectivamente, foram abatidos pela polícia francesa ontem à tarde (hora local) em Dammartin-en-Goele. Os dois irmãos de origem franco-argelina protagonizaram um dos mais sangrentos atentados de sempre em França, depois de na quarta-feira passada entrarem na redação do jornal satírico Charlie Hebdo e disparado sobre toda a gente que encontraram pela frente, causando 12 mortes, e colocando-se de seguida em fuga. Ontem, cercados pelas autoridades, deu-se o desfecho mais previsível, uma vez que dificilmente aceitariam ser capturados com vida, depois dos dois dias em que se tornaram os fugitivos mais odiados do mundo. As suspeitas de que os irmãos estariam ligados a uma rede da Al-Qaeda foram confirmadas através de um relatório da CIA divulgado pela CNN. Cherif recebeu treino num campo da Al-Qaeda no Iemen, e cumpriu uma curta pena por um crime menor,  e foi na prisão que se tornou um fanático religioso. Este é um problema que já existe noutros países, o da "Universidade do Crime" que representa o sistema que deveria corrigir e reintegrar os marginais, e que a França vai agora ter que estudar para evitar futuras situações deste tipo. Mas o que mais se viu deste lamentável episódio que no total causou 17 mortes em três dias, e deixou o mundo preso aos seus desenvolvimentos?



Este na imagem é Dean Baquet, editor do New York Times, que saíu em defesa daquela publicação, que foi criticada por se recusar a publicar as controversas capas do Charlie Hebdo. Muito bem, a meu ver. De louvar que não se apague a memória, certo, mérito para quem publicamente se afirma contra o terror como forma de calar a voz crítica, mas cuidado com os exageros. Terá tanto de democrático obrigar alguém a publicar seja o que for, como de o proibir. E infelizmente o combate à intolerância foi pontuado ele próprio também por alguma intolerância, bem como muita vaidade. Em nome do que afirmavam ser "a defesa da liberdade de expressão", muitos colocaram-se em "bicos de pés", como se isto fosse algum concurso de beleza, para eleger o Miss e a Mister Liberdade 2015. Mas já que falamos de tolerância e liberdade de expressão, acho que antes de defendermos o direito a escrever e dizer o que quisermos, deviamos também ter a certeza que depois se lê e que se ouve em condições. Senão vejam:


Também Gustavo Santos foi vítima de terrorismo...verbal. Isto a meu ver é um atentado à liberdade de expressão, sem margem para dúvidas, apesar de eu próprio não poder dizer que ele merecia palmadinhas nas costas. O apresentador português deixou no Facebook um comentário sobre os atentados, que viria ser abusivamente e erradamente interpretado e deu ao seu autor uma enorme dor de cabeça. Alguns media pegaram nas palavras de Gustavo Santos e transformaram-nas em "declaração de apoio" aos autores do atentado ao Charlie Hebdo. Foi como pescar peixe num barril: qualquer coisa que não fosse na linha da indignação, do repúdio, do "malditos vão ver", do "ai se eu vos apanho" ou outras sugestões de idêntico ou pior tom que os próprios fundamentalistas que acusamos de barbárie é um "insulto", e o seu autor deve ser denunciado e enxovalhado na praça pública. Curioso como a maioria daqueles que se apressaram a condenar o apresentador nem se deram ao trabalho de tentar perceber o que ele escreveu, ou foram simplesmente a correr à sua página no FB para partilhar e denunciar o "desaforo" - reparem nas 925 partilhas do primeiro texto, e como no segundo onde quase pede desculpas pelo que não disse há apenas 43. Pelos critérios da liberdade de expressão, este deve ser o seu circo, o seu "reality show", o seu "Big Show". Eu no lugar do Gustavo Santos tinha optado por deixar passar esta onda de choque, e não posso de todo concordar com a ideia de que a religião não deve ser objecto de sátira - a própria religião é uma sátira! Que diabo, não se poder caricaturar personagens que poderão muito bem ser apenas fictícios. Mas aí está, a liberdade de expressão deveria dar o direito a cada um de dizer o que pensa, e não precisar que pensem por ele. Mesmo que aqui o autor fosse mesmo a favor dos terroristas, estava no seu direito, e é com essas afirmações que ficaria marcado - o que não é aqui o caso. De nada valeu a Gustavo Santos ter começado por dizer que os responsáveis pelo atentado deviam ser "apanhados e severamente julgados pelo que fizeram", pois as lentes turvas do "politicamente correcto" já tinham produzido o seu efeito, e num desses tablóides que corremperam as suas palavras diz-se que o actor acusou os "cartoonistas" de colocarem em risco as nossas vidas. Leiam a última parte que sublinhei, e se ainda pensam que é isso que ele pretende dizer, então peço desculpa, pois entre a vossa "liberdade" e nenhuma, prefiro a última alternativa.



Ainda nos media, quem disse que no mundo islâmico se "festejou" o atentado no Charlie Hedbo? Aqui temos dois exemplos de como os cartoonistas em países árabes estavam solidários com os seus colegas franceses. Em cima temos duas tiras do jornal libanês An Nahar; no da esquerda lê-se: "Mas..ele chamou-me terrorista", e no da direita a mensagem diz: "É assim que lidamos com os assassinos de cartoonistas". No de baixo vê-se um outro "cartoon" publicado no Al-Arabi Al-Jadeed, um jornal em língua inglesa do Catar, e penso não ser necessário fazer qualquer tradução neste caso. Lembro-me quando após os ataques às torres gémeas no 11/9 foram transmitidas imagens de palestinianos a festejar na Faixa de Gaza, uma imagem lamentável, sem dúvida, nada justifica comemorar a desgraça alheia. Quer dizer, mesmo aqui depende, senão vejamos: têm um desconto, os deslocados da Palestina, empurrados para fora do seu território pelo exército israelita, apoiado logistica e financeiramente pelos americanos? Além do mais, terão visto eles as imagens do terror nesse dia em Nova Iorque, o impacto dos aviões nas Torres Gémeas? Ao vivo e a cores, com comentários na internet logo a seguir, número de mortes? Talvez tenham pensado que morreram duas mãos cheias de pessoas, entre as quais mulheres e crianças, como acontecia com eles durante os "raids" aéreos israelitas, e sentiram-se um bocadinho vingados - é uma questão de perspectiva, e de quanto tolerante e aberto cada um é. Eu próprio não considero hilariantes os "cartoons" que satirizam reféns decapitados, mulheres violentadas e humilhadas, ou bombistas suicidas, do calibre daqueles que o Charlie Hebdo publica. No entanto não me sinto incomodado, e muito menos me incomodam as ilustrações do profeta Maomé ou de qualquer outro, pois não sou religioso. E se fosse? Como poderia saber? Sinto o que sinto, não sei o que sentiria de outro jeito. Este é o problema da liberdade de expressão meus amigos: temos que ver e ouvir o que não gostamos para ter a legitimidade de criticar quem censura.



Então quem pode retirar os dividendos do ódio com motivações culturais, e especialmente religiosas? Marine Le Pen, por exemplo, estava no seu sétimo Céu, e sentiu-se tanto à vontade que até ponderiou pedir a legalização da pena de morte para os crimes barbáricos. Tanto ela como toda a extrema-direita europeia e os defensores da teoria maluca da "Eurábia", uma teoria da conspiração que nos fala de uma Europa islamizada, com a população seguidora de Maomé a triplicar em dez anos, mesquitas, burqas, e véus por todo o lado, um muçulmano em cada esquina - e isto está a decorrer neste momento...na cabecinha deles. O mais triste é tanta gente acreditar em tal patranha. No mapa que vemos em cima podemos ver a diferença entre o antes e depois de se beber este tóxico bagaço islamófobo: a percepção e a realidade. Assim temos que na França, onde ocorreram os atentados, os franceses pensam que a população é composta por quase um terço de muçulmanos, quando na realidade são apenas 8%. Também no Reino Unido, onde se diz existirem "cidades inteiras de muçulmanos" (ouvi dizer que o monstro do Lago Ness converteu-se recentemente ao Islão), existem 5% de muçulmanos, contra os 21% respondidos na média do inquérito. Se esta "pomada marada" faz os britânicos e os franceses ver a quadriplicar, aos alemães e aos belgas não faz tão mal, mas devia ser banida na Espanha, onde os "nuestros hermanos" vêem oito muçulmanos onde existe apenas um, e na Polónia já está tudo "passado", a ver 50 vezes mais muçulmanos que a realidade. Ah sim, e estima-se que a população islâmica na Europa seja de 58 milhões em 2030, contra os 30 milhões em 1990, antes dos próprios europeus descobrirem que era mais fácil contratar turcos, marroquinos e argelinos para fazer o trabalho que eles não querem fazer. Se nem sequer duplicou em 40 anos, onde é que foram buscar essa "triplicação em 10 anos" que sustenta essa "Eurábia"? É o delírio, o fim do mundo em cuecas. Se vocês largassem haxixe, assim não tinham que andar pelas mourarias, ó malta, e já não andavam por aí a ver "fantasmas de burqa".




É a força da propaganda a juntar-se ao medo do que não conhecemos. Foi talvez a pensar nestes 31% de potencial eleitorado (talvez aí Marine Le Pen até fizesse a dança do ventre) que o escritor Michel Houellebecq imaginou um presidente da França muçulmano. Este Houellebecq, na esquerda da imagem em baixo, ao lado do seu irmão gémeo português Marante, vocalista dos Diapasão, foi recentemente capa do Charlie Hebdo, e é autor da novela de ficção "Soumission", que já tinha sido o título de um igualmente polémico documentário da autoria de Theo Van Gogh, ele também vítima de um fanático islâmico. Reparem na originalidade dos autores e na diversidade dos argumentos: Europa islamizada/muçulmanos em toda a parte/aviões a espetarem-se nos minaretes das mesquitas. Depois dos atentados o escritor, que parece um transformista aposentado, suspendeu a promoção da obra. Então, é assim? Olha o cobarde! Não espera...fez bem, por respeito às vítimas. Mas...assim está a fazer o jogo dos terroristas...ou não. Já nem sei bem, e aposto que vocês muito menos. É o que dá quando se mistura a religião e o terrorismo, dois grandes venenos deste tempo.

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