sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

É grave, doutor?



E para terminar esta primeira semana completa de 2015, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Sem querer, aí está uma pequena homenagem às sátiras. E já agora aos sátiros...

Fui ao médico saber os resultados do meu “check-up” anual, o que em tempos servia apenas para comprovar a minha saúde férrea e boa forma espectacular. Mas à medida que os anos vão passando e a idade vai pesando, aumenta também o receio de um prognóstico menos animador. E de facto assim foi, estimado leitor, e garanto pelas alminhas todas do Céu que engoli em seco quando o meu médico me anunciou que era portador de notícias “não muito boas”. Assumindo que por “não muito boas” as notícias não seriam “apenas boas” ou sequer “assim-assim”, perguntei-lhe quanto tempo me restava entre os vivos. Esta estratégia de “terra queimada”, de adivinhar sempre o pior dos cenários, faz com que qualquer outro se apresente sempre como preferível. É um método praticamente infalível e até hoje não há quem se tenha queixado de ter falhado mais do que uma vez. O bom doutor respondeu-me que o meu óbito era uma das poucas certezas que me podia dar, mas sem precisar uma data, ou causa. Isto diz tudo do actual estado da saúde em Macau: chegámos ao ponto que nem um diagnóstico em condições nos é facultado.

Seguiu-se um pequeno questionário sobre alguns dos meus hábitos de vida, nomeadamente no que toca a passatempos e actividades ao ar livre. “O costume” – respondi – “criticar por tudo e por nada, queixar-me disto e daquilo, apontar defeitos, detectar e denunciar lapsos, fraudes e desonestidades intelectuais, em suma: pisar os calos a quem teima fazer uso e abuso da presunção de que se encontra na posse do único neurónio sobrevivente desta travessia do deserto das ideias que é Macau” e, quanto a actividades ao ar livre, nenhuma em particular, tirando o “full-contact” involuntário que é andar do meio da multidão na baixa de Macau em hora de ponta, ao mesmo tempo que debito obscenidades. Detectando a olho nu o quadro clínico evidenciado pela acção do agente patológico do cinismo, perguntou-me que tipo de filmes eu via, ao que lhe respondi “aquele que já toda a gente viu, está mais que visto, e que peço para que me tirem dele, mas em vão”. Antes que me questionasse sobre gostos musicais, fui adiantando que oiço “a música que me estão sempre a dar” – e que não é grande coisa.

E foi então que ele resolveu abrir o jogo: os meus testes indicavam a presença de substâncias opináceas, que mesmo não constando da lista de drogas proibidas, são um pesadelo – mais para os outros do que para o próprio consumidor. Confessei-lhe que sim, e que há vários anos que consumo com frequência todas essas drogas que me permitem sobreviver em Macau: a Protestantina, que se cheira, mais esses malditos cigarros de Xatixe, que não me “dão moca”, mas fazem-me “dar com a moca”, e a pior de todas, a injectável Hiro-ira, que me deixa num estado de euforia insuportável, mas mesmo assim preferível aos diabólicos sintomas de abstinência. O problema mais grave era do foro hepático, do fígado, ou neste caso fígados: maus, muito maus fígados.

O meu bom doutor suspirou e recordou-me que apesar de não existir o risco de falência física, o abuso de opináceos tem repercussões sérias ao nível da socialização, do contacto com outros seres humanos. Avisou-me então da possibilidade deste hábito fazer alienar-me dos que me são mais próximos, que familiares e amigos “poderão deixar de me reconhecer”. Isto ajuda a explicar porquê ultimamente me têm confundido com japoneses: umas vezes com um tal Tukamosca Ninguemtatura, outras com Saidaki Ogandamelga – este último deve ser algum personagem dos Pokémon, a julgar pelo nome. Alertou-me ainda para a possibilidade de surgirem outras complicações, como o Síndroma de Tourette, muito comum em casos desta gravidade. Fingi que não sabia o que isso era e aproveitei para o insultar, mais à sua progenitora, ao que reagiu com um franzir de sobrancelhas, próprio de quem acaba de confirmar uma suspeita. Coitado…

Na hora de me prescrever a medicação, inquiriu-me sobre eventuais alergias, ao que retorqui “com a excepção de gente burra, mentirosa e hipócrita, nada”. Receitou-me então Tacaladryl, uma pomada para tratar a sarna que às vezes arranjo para me coçar, e que me deixa com o escárnio à mostra; Cretinol Oral com vitaminas do complexo de inferioridade, para baixar os níveis de sarcasmol, e que dizem ser “um ganda xarope”, e finalmente o pior de todos, o Conformassim, um anti-depressivo administrado na forma de supositórios do tamanho de uma lata de refrigerante, com provas dadas no aumento dos níveis de empregabilidade. No fundo da receita lia-se ainda “comer caldo”, o que julguei tratar-se de alguma recomendação dietética, mas depois de se desculpar pela letra de médico, o doutor explicou-me que ali estava escrito “COMER CALADO”, o tratamento que para os opinómanos é equivalente à metadona para os toxicodependentes.

Respirei fundo, resisti à enorme tentação de voltar a insultá-lo, desta vez deixando claro que nada tinha a ver com Tourette, e optei antes por agradecer e desejar-lhe um resto de dia agradável. Deixei o consultório com um sorriso nos lábios, e em vez de ir aviar a receita remeti-a antes para a cesta secção – a primeira cesta do lixo que encontrei. Voltei para casa convencido que afinal os resultados dos exames não revelaram nada que inspire cuidados: mais vale ser um doente consciente, do que um demente sorridente.


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