sábado, 28 de março de 2015

Onde mais dói (e dói mesmo)


O pódio do mal.


Estava na noite passada a ver o programa "Linha da Frente" da RTP, que desta vez tinha o sugestivo sub-título "As vítimas do BES", dedicado aos 2500 pequenos accionistas que investiram em papel comercial do Banco Espírito Santo, ficaram "fu" e agora esperneiam mais do que um frango de aviário mal degolado na hora em que lhe arrancam as penas. Vou ser curto e grosso: percebo muito pouco de Economia, mas se há uma coisa que me apaixona é observar o comportamento humano na sua forma mais crua, mais genuína. O melhor "restaurador Olex" da personalidade, aquele que revela a verdadeira natureza de cada ego, é uma situação de crise extrema, onde não há cosmética que disfarce as carantonhas, de tão feias que são. Diz-se que existe um "limite" onde um dia toda a toda a gente se encontra e eventualmente "se dá realmente a conhecer", exposta como se tivesse passado pelo raio-X da personalidade. Convém sempre saber se no caso de irmos parar um dia a uma ilha deserta com alguém vale mesmo a pena confiar nessa pessoa, ou se o melhor é limpar-lhe o sebo e jantá-la, antes que seja ela a tomar essa iniciativa. Há coisas em que não se deve mesmo hesitar, reflectir ou pensar duas vezes, e em nossa defesa sempre podemos rugir e bater no peito tal um gorila, e assim tirar do caminho essa coisa da "humanidade" que é suposta estar dentro de cada um, que às vezes atrapalha mais do que ajuda.

Posto isto, e no caso de o banqueiro Ricardo Salgado ir parar a uma ilha deserta com um dos accionistas do BES, não se arrisca tanto a ser comido, pelo menos no sentido antropofágico do termo, como a ser sacudido, torcido e espremido até ao tutano até que saia cá para fora a cheta que estes "pobres coitados" investiram no seu esquema, e que depois "evaporou". Mas aí está, há uma expressão popular antiga que se diz de quem é rico: que "até caga notas de conto", e agora veio Ricardo Salgado demonstrar que isso não é para ser interpretado no sentido literário. Se fosse mesmo assim, e o homem já tinha laxante a escorrer-lhe dos ouvidos, de tanto que corria pela sua goela abaixo - até já passava por debaixo das portas, tal era o "sumo" que tinham tirado dele. No entanto há mar e mar, há ir e voltar, assim como há investir e investir, e choram uns, outros ficam a rir. O banqueiro Ricardo Salgado pediu desculpas, diz que vai cavar fossas até aos 851 anos para pagar o que deve (ah...a garantia da mortalidade, mais eficaz que qualquer apólice de seguros), e o que mais pode ele fazer? Não é o Pirata Barba Ruiva para ter enterrado o dinheiro dos investidores numa ilha do Tesouro, e apesar de eu não discordar de quem defende que ele devia estar preso, também não era isso que ia fazer as notas caírem do céu. O que aconteceu com o dinheiro, meus senhores, permitam-me que vos diga recorrendo a uma onomatopeia: "Puff!".

Os lesados com a falência do BES parecem pessoas normais, daquelas que vemos na rua todos os dias, quem sabe se nos cruzámos com elas numa ou noutra valência, e não deu para notarmos os fios. Quais fios? Os fios que as prendiam à vida, à saúde, ao equilíbrio emocional e à sanidade mental, em geral. A primeira entrevistada foi uma senhora que perdeu "as economias de uma  vida", vida essa que levou a trabalhar no campo depois de deixar os estudos ainda durante o primeiro ciclo, juntou aquele dinheirinho com tanto esforço, à custa de sangue, suor e lágrimas, heróis do mar nobre povo, etc., etc. Dá para entender o desespero da senhora, que não é propriamente uma jovem para poder arregaçar as mangas e recomeçar a partir do zero, e até nos sentimos solidários com ela e oferecemos-lhe o que não nos custa nada porque não é material: a nossa simpatia. Só que para ela parece que isso não chega, e durante a reportagem - e assumo ela ter consciência de que ia aparecer e ser vista no mundo inteiro - comporta-se como uma tresloucada, repetindo vezes sem conta que "está a gastar os últimos cartuchos", ameaça que "nos vai suicidar a todos" (isto foi a minha interpretação, entenda-se) e a certo ponto mete-se de pé em cima de uma mesa no Banco e berra que "vai fazer dali a sua segunda casa". As circunstâncias especiais e o mediatismo que envolveram o caso do BES permitem-lhe que adopte esta conduta de troglodita, mas fosse o seu apenas um caso isolado, e ia direitinha para a esquadra onde lhe administravam um sedativo "dos grossos". Assim sendo comporta-se como uma selvagem e ainda fica com a opinião pública do seu lado, mas até que ponto? O que quer ela, que "derrubemos o sistema"? "Anarquia já"? "Violemos o presidente"? Não obrigado, e sei que estou a ser mauzinho quando digo isto, mas aquele é o tipo de pessoa que perante uma situação idêntica, mas que se passasse com outra que não ela, ainda mandava umas "bocas" do tipo "quem é que te mandou ser parva?". E digo isto porque tal como ela já trabalhei na agricultura, mas passei também por outros sítios e vi muitos "carnavais" destes.

Não estou com isto a isentar a banca das suas responsabilidades, ou sugerir que os lesados se resignem à pouca sorte, porque isto acontece, olha, paciência, tentem numa próxima reencarnação. Nada disso, até porque quando navega tudo no mar de rosas das finanças os banqueiros enchem-se de cheta e nem um copito pagam à malta, portanto tudo bem (ou tudo mal), aceita-se que lhes venham pedir contas, exigirem explicações e o mais importante, encontrar uma solução que passe por menorizar os prejuízos dos lesados, compensando-os de algum jeito. MAS, e é um grande "mas", agir como um terrorista da treta ou um desgraçadinho não vai adiantar de nada. Além da tal senhora do parágrafo anterior, foram entrevistadas outros patos investidores, gente de idade, velhos, avôs e avós a chorarem baba e ranho, como se fossem crianças de colo a soluçar e a fazer birra, dizendo que não vão jantar e se amanhã estiverem mortos a culpa é do pai ou da mãe que não os deixaram fazer isto e aquilo. É só a minha opinião, e não me canso de sublinhar isto, mas o que se pedia nesta hora era um pouco de dignidade, e que pelo menos se mantivesse a postura e a graciosidade, em vez de se aprestar a contribuir para lixo televisivo, que apenas tem o objectivo de angariar audiências.

Curioso como subitamente estas pessoas, que tinham o dinheiro investido no BES, ou seja, não tinham o mesmo acesso do que se o tivessem guardado na lata das bolachas ou debaixo do colchão, passaram a necessitar dele como se fosse o ar que respiram. São centenas de casos de ex-clientes do BES a precisar de operações, a viver na rua, a pedir esmola, um desespero onde estranhamente ninguém comete suicídio - pelo menos na reportagem não se fez referência a nenhum caso tão extremo, e seria de esperar pelo menos uma tentativa. São só pessoas que um dia tinham 25 mil euros a render no banco, e que no dia seguinte precisaram de todos os centavos dessa quantia, senão morriam. Arriscando mais uma vez a ser maldoso, desconfio que caso o "pasteleiro" Ricardo Salgado tivesse a elevar com competência os "papo-secos" destes clientes com o seu "fermento", e muitos dos "aflitos com falta de ar" andavam a transpirar saúde e se calhar ainda lhe passavam mais massa para as mãos. Também nesse casi não iam aparecer na televisão a dizer maravilhas do sr. Salgado, de como ele é bom e generoso, e o mais provável que permanecessem anónimos, que o segredo é alma do negócio, e se lhes perguntassem sobre alguma  carteira de papel comercial iam rosnar e mostrar o dente, deixando bem claro que ninguém tem nada a ver com isso, e o dinheiro é deles e não dão nem emprestam um avo, e "vão mas é trabalhar, malandros". Não quer dizer que não tenham casos genuínos, daqueles a lamentar, revoltantes, mas muito do meu cepticismo se deve ao sortido de personagens com que me fui cruzando enquanto trabalhei na agricultura - e nos outros sítios por onde passei, depois disso.

Como já disse, não entendo peva de Economia, mas penso que não é necessário ser um Albano Martins para se saber que o dinheiro que temos no banco - todos nós, nas nossas contas - não está ali pendurado com molas num varal com o nosso nome lá escrito para o irmos buscar caso qualquer coisa dê para o torto. O dinheiro do Leocardo, do Sr. Silva, do Sr. Antunes e da Sra. Maria da Purificação da Piedade das Dores, todo depositado no mesmo banco, é o dinheiro DO BANCO, e não dos bancos do Leocardo, do Sr. Silva, do Sr. Antunes e da Sra. Maria da Purificação da Piedade das Dores isoladamente, plantado num vasinho e regado de quando em vez para não secar. E o que fazem estes  bancos com o pilim colectivo da clientela? Isso mesmo, investem, e para o fazer não necessitam da autorização epressa de cada um dos depositantes, que quando "confiam o dinheiro ao banco" estão mesmo a "confiá-lo", deixando fazer o que bem entenderem com ele. Não é a mesma coisa que deixar as notas na caixa e dizer "toma aí conta disso que eu daqui a um mês venho cá buscar". Se um belo dia de Junho o banqueiro japonês Eusou Maluko resolve investir o capital inteiro da instituição de crédito que dirige em ovos da Páscoa, porque tem um "feeling" que em Setembro a cotação vai "disparar até ao tecto", e o dinheiro for todo pró galheiro, vai dinheiro de toda a gente que ali o deixou depositado, sem excepção. A única forma de o reaver seria fazer o sr. Maluko pagar do seu próprio bolso. No caso do BES o sr. Maluko é mais conhecido por "Ricardo Salgado".

Agora uma realidade que no caso de ser novidade para alguém vai deixá-lo em estado de choque: o dinheiro não cresce nas árvores. Passo a elaborar. Quando se "investe" está-se a gastar dinheiro para recuperar o montante investido e obter lucro, que pode ser mais, ou menos, conforme o sucesso do investimento. Quando se investe no sentido de produzir e escoar a totalidade da produção para o exterior, e no fim acabar com um saldo positivo na balança comercial, e criam-se ainda postos de trabalho nesse processo, a isso chama-se "produzir riqueza", ou seja, faz-se com que entre capital que não existia antes e ficam todos contentes. Yupi. Quando se investe nos mercados, e se fica a depender das  suas flutuações, de ganhos e perdas, de falências, insolvências e tipos que ora compram um "rolls-royce" novo, ora acabam a balançar na ponta de uma corda, há a possibilidade de ganhar muito ou de perder tudo, e o capital que circula é sempre o mesmo, praticamente, e só vai mudando de mãos. Portanto o dinheiro que uns ganham é o dinheiro que outros perdem, e o dinheiro dos clientes do BES foi muito possivelmente transformado em pó que depois foi inalado por um corrector de Wall Street qualquer, em cima das bóias de  uma bimba loiraça, com os dois "na maior", dentro de um "jacuzzi". Mas não se aborreçam, que se um dia for a vez dele ficar com o cu apertado, não vão vê-lo na televisão a choramingar por não poder mais comprar ração para o cão e comida para ele próprio, ao ponto de ter de comer o cão para solucionar o problema de ambos. Torna-se um pouco complicado chatear seja quem for depois de deixar a mioleira toda espalhada pelas paredes do apartamento com vista para a ilha de Manhattan, e que passou de "custar uns trocos" para "completamente incomportável", ao ponto de ter menos de 24 horas para o desocupar. É o capitalismo, meus amigos, que pode ser uma maravilha, mas também pode ser uma merda, e cada vez mais desproporcional se torna esta equação, com mais os que vão acabando sarjeta para que os mesmos de sempre fiquem ainda mais ricos.

Portanto sabendo que o banqueiro Ricardo Salgado não tem um realejo para dar à corda e tirar de lá notas para calar o clientes chorões, fico cada vez mais com a sensação de que os portugueses não são um povo mais ou menos ganancioso que outros, mas consegue ser muito mais aldrabão. Esqueçam aqueles populares que à pergunta sobre o que fariam com o "jackpot" do euro-milhões respondem balelas do tipo "compro uma casinha para os meus filhos...o resto vou guardar...como um pãozinho com um queijinho por dia...". Tretas! Fariam o mesmo que toda a gente faz quando se apanha com mais dinheiro do que o número até onde sabe contar: ostenta-o, esbanja-o, e enquanto o tem procura usá-lo para comprar os outros, porque assume que toda a gente é como ele - e vai tendo cada vez mais razão, infelizmente. Quando nos interrogamos como é possível perder o juízo quando se fica na posse de muito mais dinheiro do que é preciso, estamos a fazer a pergunta errada. O truque aqui é conseguir manter a sobriedade, o que alguns (poucos) conseguem, e outros não. O dinheiro na verdade não enlouquece ninguém - é a megalomania das pessoas que se convencem que uma vez bafejadas pela fortuna, são capazes de tudo. Vendo-se numa situação em que o dinheiro é produto de anos de sacrifício, como alegam os ex-clientes do BES, aí sim, é a loucura, e é aqui que reside a grande ironia de tudo isto: o veneno que os mata é também o único antídoto, e foi pelo ralo do BES abaixo. E agora?

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